Falta de apoio a projetos ousados pode estar matando pesquisa sobre câncer

Pesquisas inovadoras têm grande dificuldade de conseguir verba nos EUA.
Cientistas se sentem forçados a propor apenas ideias seguras e 'chatas'.

Gina Kolata Do 'New York Times'
Entre as recentes verbas concedidas pelo Instituto Nacional do Câncer, nos EUA, está uma para um estudo questionando se as pessoas especialmente receptivas a comidas saborosas possuem maior dificuldade em se manter numa dieta. Outro estudo avaliará um programa baseado na web capaz de estimular famílias a escolherem alimentos mais saudáveis.


Ewa T. Sicinska, pesquisadora do Dana-Farber Cancer Institute, em Boston (Foto: Bryce Vickmark/The New York Times)
Muitas outras verbas envolvem pesquisas biológicas que dificilmente serão pioneiras em algo. Por exemplo, um projeto examina se uma descoberta em laboratório envolvendo câncer de cólon também se aplica a câncer de mama. Porém, mesmo aplicável, ainda não existe tratamento que explore essa descoberta.

O instituto gastou 105 bilhões de dólares desde que o presidente Richard M. Nixon declarou guerra à doença, em 1971. A Sociedade Americana do Câncer, o maior financiador privado da pesquisa sobre câncer, gastou cerca de US$ 3,4 bilhões em verbas de pesquisas desde 1946. Mesmo assim, a luta contra a doença vai mais devagar do que a maioria esperava, com apenas pequenas mudanças na taxa de mortalidade nos quase 40 anos desde seu início.

Um dos principais impedimentos, dizem os cientistas, é o próprio sistema de concessão de verbas. Ele se tornou uma espécie de programa de empregos, uma forma de manter laboratórios de pesquisa indo, ano após ano, com o entendimento de que o foco estará em projetos pequenos – sem muitas probabilidades de dar passos significativos na direção da cura do câncer.

“Essas concessões não são inúteis, mas estão inclinadas a produzir somente progresso incremental”, disse o Dr. Robert C. Young, chanceler do Fox Chase Cancer Center, na Filadélfia, e diretor do Quadro de Conselheiros Científicos, um grupo independente que faz recomendações ao instituto.

Os pesquisadores escolhem tais projetos, pois, sem o dinheiro para financiar a maioria das propostas, eles ficam receosos em correr riscos e escolher algo que possa não obter sucesso. O problema, segundo Young e outros, é que projetos capazes de fazer uma enorme diferença na prevenção e no tratamento do câncer são descartados por serem incertos demais. Na verdade, tem se tornado uma tradição entre pesquisadores do câncer que descobertas inovadoras envolvam projetos com grandes chances de fracasso e, por isso, não tenham recebido verbas federais – forçando pesquisadores a lutar vigorosamente para continuar.

Veja por exemplo uma droga transformativa, para câncer de mama. Ela foi baseada na descoberta do Dr. Dennis Slamon, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, de que cânceres de mama muito agressivos possuem diversas cópias de uma proteína em particular, a HER-2. Isso levou ao desenvolvimento da herceptina, uma droga capaz de bloquear a HER-2.

Bom prognóstico
Hoje, mulheres com HER-2 em excesso, que antes recebiam os piores prognósticos de câncer de mama, hoje recebem prognósticos dos melhores. Todavia, quando Slamon queria iniciar sua pesquisa, a verba foi recusada. Ele só a conseguiu depois que a agradecida esposa de um paciente o ajudou a obter dinheiro da Revlon, a companhia de cosméticos.

Entretanto, estudos como aquele sobre comidas saborosas conseguem as verbas. Esse projeto, que recebeu uma verba de 200 mil dólares ao longo de dois anos, é baseado na ideia de que, como a obesidade é associada a um maior risco de câncer, compreender como as pessoas enfrentam problemas para emagrecer poderia levar a melhores métodos de controle de peso. Portanto, devido a tal justificativa, conclui-se que o devido controle poderia levar a menos obesidade – e em consequência, menos câncer.

“Foi a primeira concessão de verba à qual me submeti, e consegui o dinheiro na primeira tentativa”, disse o pesquisador-chefe Bradley M. Appelhans, um professor-assistente de ciências médicas básicas e psicologia da Universidade do Arizona. Appelhans afirmou estar ciente de que o trabalho dificilmente curaria o câncer, mas espera “oferecer conhecimento para contribuir de forma incremental com estratégias mais efetivas para a prevenção de câncer”. Até mesmo importantes funcionários federais da área dizem que o sistema precisa ser alterado.

“Temos um sistema que funciona muito bem no geral, e é muito bom em rejeitar coisas ruins – nós não custeamos pesquisas ruins”, disse o Dr. Raynard S. Kington, diretor do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, que inclui o instituto do câncer. “Mas dado isso, nós também reconhecemos que o sistema provavelmente traz desincentivos para financiar pesquisas verdadeiramente transformativas."

A Sociedade Americana do Câncer, uma organização privada, segue um caminho similarmente cauteloso. No ano passado, ela concedeu US$ 124 milhões em verbas de pesquisa, com o dinheiro vindo de alguns grandes doadores e de eventos como passeatas ou contribuições memoriais. O Dr. Otis W. Brawley, diretor médico da sociedade, disse que todo o esforço de pesquisa relativa ao câncer estava cauteloso demais.

Selvagens
“O problema na ciência é que a maneira de ir para frente é se manter dentro de estreitos parâmetros e fazer o que os outros estão fazendo”, disse Brawley. “Ninguém quer financiar ideias inovadoras, selvagens”. Ele acrescentou que o problema de se conseguir dinheiro para propostas imaginativas, porém arriscadas, piorou nos últimos anos. Existem mais cientistas buscando verbas – eles surgiram no campo na década de 1990, quando o orçamento do Instituto Nacional de Saúde foi dobrado, antes de afundar novamente.

Isso torna muitos pesquisadores, que precisam das verbas não só para manter seus laboratórios, mas também suas posições acadêmicas, ainda mais cuidadosos com as propostas submetidas. Desta forma, os comitês de revisão de projetos ficam menos aptos a liberar seu escasso dinheiro a propostas especulativas demais. A filantropia, grande mecenas para alguns pesquisadores de ideias incomuns, hoje atravessa problemas financeiros. Os avanços na tecnologia deixaram as pesquisas mais caras.

“Cientistas não gostam de falar sobre isso publicamente”, pois temem que suas afirmações sejam vistas como ataques aos institutos salutares que os sustentam, disse o Dr. Richard D. Klausner, um ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer. Klausner, entretanto, acrescenta: “Nunca tive uma conversa sobre o sistema de concessões onde não houvesse um incrível consenso de que ele não está funcionando. Essa é uma oportunidade terrivelmente perdida para os cientistas, pacientes, o país e o mundo”.

O Instituto Nacional de Saúde iniciou “experimentos-piloto” para ver se existe uma forma melhor de conseguir financiamento para projetos inovadores, disse Kington, seu diretor. Um deles é o “prêmio pioneiro”, iniciado em 2004, para “ideias com potencial de alto impacto, mas que podem ser ficcionais demais, atingir uma diversidade de disciplinas abrangente demais, ou estar num estágio inicial demais para se sair bem no tradicional processo de revisão por pares”. Porém, apenas de 3% a 5% dos requerentes conseguem a verba. Agora os institutos decidiram reservar até US$ 25 milhões para “bolsas transformativas R01”, descritas como “pesquisas excepcionalmente inovadoras, de alto risco, originais e/ou incomuns, com o potencial para criar ou derrubar paradigmas fundamentais”.

Cerca de 700 propostas chegaram, mas apenas um pequeno número deve ser financiado, de acordo com o Dr. Keith R. Yamamoto, biólogo molecular e vice-reitor executivo da escola de medicina da Universidade da Califórnia em San Francisco, e co-diretor do comitê responsável por analisar as propostas. “Das leituras de inscrições até agora, vemos algumas coisas realmente fantásticas”, disse Yamamoto.

Dinheiro novo
Existe também o dinheiro novo, do pacote de estímulo econômico liberado pelo Congresso dos EUA, o que dá ao Instituto Nacional de Saúde US$ 200 milhões para “projetos de desafio” que durem dois anos ou menos. Entretanto, o INS já recebeu cerca de 21 mil projetos para apenas 200 bolsas de desafio. Os pesquisadores que se inscreveram admitem que não há muita esperança.

“Eu me inscrevi recentemente para uma dessas bolsas de desafio, como o resto dos lemingues”, disse o Dr. Chi Dang, professor de medicina, biologia celular, oncologia e patologia na Universidade Johns Hopkins, em Maryland. Porém, “há muito mais inscrições do que vagas”, explica.

Alguns cientistas experientes encontraram uma forma de contrabalancear o problema. Eles realizam os experimentos arriscados realocando dinheiro de suas verbas. “De certa forma, o sistema é codificado”, disse Yamamoto, permitindo que os bem-informados disfarcem e façam seus próprios atos em paralelo.

Grandes descobertas foram feitas com financiamento do INS sem manipular o sistema, disse Klausner. “Entretanto”, acrescentou, “acredito que isso geralmente tenha acontecido apesar, e não com a ajuda, do sistema de análise das propostas”.

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